quinta-feira, 16 de maio de 2013

Robôs que falam à Alma

Traços por terminar, esboços carecendo de acabamento, palavras soltas, números que perambulavam; confusas anotações passeavam dispersas pelo papel. Eram os anônimos; os sem história. Aqueles que anseiam por existir. Todos ali, cumprindo seu doce ritual de mero fragmento na grande e suntuosa engrenagem da sociedade pós-moderna ou moderna se assim o valha.

Estávamos todos ali, na praça dita da Sé, onde tudo teria começado, sem saber que éramos observados por nós mesmos, também outros anônimos; autômatos, cuja carne havia sido tinta e a história lhe nomeara arte. Era Gustavo Alamón que expunha na Caixa Econômica Federal, os seus robôs, feito telas, ou mesmo espelhos que nos convidavam a este nosso singelo “Mal Estar”, de insignificância.

Anônimos, robôs, autômatos, engrenagens. Por códigos, binários, con­­versamos pela rede que nos ilude com a ideia de fazer parte, do todo, a todo o momento, mas que nos reduz a zeros e uns, numa planilha sem fim de números que se repetem. E foi assim que Alamón, por e-mail, nos falou de nós mesmos, falando de sua exposição no Espaço Cultural da Caixa Econômica Federal, na Praça da Sé, eleita uma das melhores Exposições de 2012. Propondo um diálogo, sem a finalidade de ser verdade, cada um expôs as suas palavras.

Cassio Gusson: Acredito que vivemos um certo vazio na arte. Um mundo cheio de certezas surgiu depois do modernismo e das “Demoiselles d´Avignon”. A Arte agora é ideia, é instalação é tudo aquilo que se quiser que seja.

Alamón: Concordo com você que tem havido um enorme vazio na arte, do cubismo em diante e sob esse olhar que marcou o fim da literatura na arte. O trabalho criativo foi reduzido à simples tarefa da decupagem de conteúdo e restou para a arte, do século XX, apenas a preocupação com a parte formal, ... quem promoveu esta ideia?

Para mim, a arte deixou de ser arte e tornou-se um artesanato muito bom, fácil de vender e de execução muito rápida. Os ateliês ser tornaram a Fábrica e começaram seu trabalho. As galerias se tornaram grandes bazares onde “vale tudo”, com determinados preços, definidos por uma promoção de publicidade muito boa, e os clientes desta burguesia nova e inquieta que pouco entendia, não seriam esmagados pelos conceitos dos artistas, com questões tremendamente preocupantes como as guerras mundiais que assolaram o primeiro mundo e deixaram milhões de mortos, as crises econômicas ou as guerras que vieram depois com as suas consequências, com seus soldados que lutavam sem saber os motivos que defendiam. Era mais atraente a este consumidor, caixas de luxo para decorar suas casas.

As bienais foram transformadas em feiras genuínas. As lutas dos mar­chands por prêmios dos jurados para seus representados, é descarada, e na de São Paulo por exemplo, deixou-se de outorgar prêmios, evitando esses enfrentamentos, tu­do em pró de evitar a desvalorização da arte como tal.

Este é um grande tema para a reflexão, e uma dolorosa questão que deve ser colocada sobre a
mesa para recuperar a capacidade de pensar, re­pensar a nossa cabeça, especialmente o que acontece com o nosso povo no início do século XXI. Em 83, quando a Bienal de São Paulo, um crítico alemão, que foi acompanhado pelo comissário da delegação dinamarquesa, abriu um julgamento que foi interessante sobre o que eu vi na Bienal, ele disse: “Em esta bienal vejo como uma tentativa de retorno à normalidade do século XX, e reflete duas tendências principais da arte universal: a arte europeia marcada pelo grande temor da guerra, e por outro lado, a arte latino-americana como o grande amor ao ser humano”.

Infelizmente, a América Latina ainda acha que os europeus são os que criam vanguardas, que estão liderando o caminho e não se percebe que a nossa tarefa na arte é ter nossas próprias angústias existenciais, nossas próprias experiências, que o nosso continente é um laboratório humano autêntico, muito rico, muito diversificado, com grandes problemas, refletindo o grande sofrimento de seres humanos em todo o mundo. O verdadeiro artista cria onde quer que esteja, porque é o mundo que ele conhece e pode evidenciar profundamente as necessidades das pessoas, suas lutas, suas falhas, seus sentimentos de amor ao próximo, que é sua vanguarda.

Cassio Gusson: A arte é a nossa ligação com nós mesmos?

Alamón:
A arte é construída por desejos, emoções, medos e imaginação que os seres humanos têm, o que levanta a sua grandeza, e não superficialmente um trabalho com frivolidade. Deve ser constantemente feita olhando para a alma do homem, seu comportamento, seu pensamento; pe­netrar no inconsciente coletivo das pessoas. O artista expressa em sua obra sua angústia existencial causada por eventos que ocorrem ao seu redor, o drama diário que afeta às pessoas; experiências muito dolorosas, mas é aí que a atividade criativa é cumprida, em detrimento do sentido trágico da vida. A arte expressa a vida, mas não só a vida do criador, e sim deve representar a vida da comunidade, dando ao grupo humano consciência de sua unidade e garantindo a reintegração social. A arte que não cumprir essa meta não é nada além de masturbação intelectual, que faz muito mal para as pessoas, que como a moda, desaparece, e não merece muita importância, porque é nada mais do que um rancor social, manifestada na crítica à sociedade.

Cassio Gusson: Quem é Gustavo Alamón? porque ele pinta quadros em vez de ser
advogado, dentista, médico ou candidato a deputado?
 

Alamón: Alamón é um homem comum, nascido em Tacuarembó a mais de ¾ de século, ou seja, 77 anos, como resultado de um casamento de pais modestos que trabalham, que meticulosamente deram muito carinho e educação compatível com os recursos econômicos disponíveis. Em definitiva, uma infância muito feliz, com poucos brinquedos que permitem o pleno desenvolver da imaginação, que supria a falta dos primeiros. O maior entretenimento foi desenho, pintura e modelagem com argila que pegávamos nas sarjetas da ruas.

Quando cheguei à adolescência, começam a piorar os compromissos econômicos, sociais, pois precisava me ‘integrar’ nesta sociedade com seus ritos e suas calças “compridas”. Tudo isso significam gastos extras que faziam tremer a economia doméstica, e começa a fase da busca de fundos para financiar essas despesas e aliviar o orçamento familiar. E é aí que começa a luta pela vida, a fase inicial de maturação, o que obriga enfrentar o futuro e tentar resolvê-lo.

Dessa forma, eu continuei a construir o meu futuro. Esse foi o problema. Estou falando sobre o ano de 49, quatro anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Minha infância teve lugar no cinema assistindo filmes de guerra, a luta pela liberdade, e os Aliados foram os heróis da nossa infância; todos aspiravam a serem os heróis do futuro, e as vocações foram construídas através da
propaganda que estava sendo disseminada.

É com base nesta pesquisa que inicio uma carreira militar; você paga para estudar e depois de quatro anos era um oficial militar. Tudo parecia formidável e simples, meus pais ficariam aliviados e felizes financeiramente, porque finalmente, eu estava forjando um futuro.

Minha experiência foi muito curta, muito difícil e dramática. Eu me senti como um robô, que de tanta obediência, eu rangia os dentes. Uma chamada de atenção de um “galão” foi o suficiente para uma punição e assim veio uma sobre a outra.

Eu nunca via a rua, então decidi abandonar a tentativa, a carreira militar. A perda da liberdade não estava nos meus cálculos futuros e foi um preço alto que exigia esta profissão. Voltei para a minha casa em Tacuarembó, quando alguém me diz que havia começado um curso para bombeiro em Montevidéu. Me registrei e voltei para a capital para competir por uma das três vagas, e então depois de dois anos eu me tornei um oficial desse corpo.

Essas duas experiências que tive sendo ainda muito jovem me revelaram inúmeras coisas. Aprendi que a carreira militar é a desumanização do homem, pois ele deve cumprir uma missão sem se importar com o “outro”. Você é preparado para matar o “outro” e fazê-lo de forma eficiente. A obediência é cumprir ordens que não são para ser analisadas. Nada mais é que uma máquina, um robô.

Nos bombeiros, ao contrário, você está para servir o “outro”; eles se prepararam para enfrentar um limite onde você deve proteger seus colegas de trabalho e auxiliares, proteger a vida das pessoas em risco ou sua propriedade; é difícil testemunhar a desgraça daqueles que perdem um ente querido ou todos os bens que custaram o sacrifício de uma vida. E é emocionante ver a solidariedade das pessoas nos momentos de angústia e dor.

Eu comecei depois a dar aulas na escola e então me tornei diretor de uma escola em minha cidade natal, até o golpe militar que ocorreu em 73 quando fui demitido.

A presença da imagem do robô era uma obsessão que tomou conta de mim. Eu fui testemunha e vi as pessoas ao meu redor, na época do exercito, agirem como um autômato, se recusando a usar seu cérebro para pensar, ou repetindo o que o rádio e a televisão transmitiam sem analisar o que era dito.

Esta figura de homem, influenciado e que teme pela liberdade, que hipoteca a sua liberdade para ficar quieto, sua­ve, sem perigo, sujeito aos pontos de vista dos interesses de algum poder, é um robô. Meus personagens não são de ficção científica, não pertencem à era da mecanização e automação, pertencem ao mundo real de hoje.

Eu sinto a necessidade de dizer essas coisas para tentar evitar que essas coisas aconteçam. Lembrem-se que entre as pessoas que comandaram os grandes eventos do século XX estão nomes como Stalin, Hitler, Mussolini, Franco, Mao e muitos outros que transformaram as pessoas em complacentes e dóceis ao exercício do poder, em troca de comida, abrigo e proteção, em troca da liberdade de pensar. Essas pessoas simplesmente transformaram seus povos em animais de estimação. Este é um dos grandes problemas do mundo contemporâneo, sem liberdade não há possibilidade de progresso.

Cassio Gusson: Aqui sabemos que Alamón é uruguaio, mas o que é ser Uruguaio?


Alamón: Ser uruguaio é ter um sentimento libertário nascido dos primeiros habitantes desta terra, juntamente com os estrangeiros que se aferraram à cultura aborígene da ajudaram, e este esforço conjunto deu origem a lutas para defender essa forma de vida. Os uruguaios, como disse um ditador ao deixar o nosso país “são incontroláveis.” Quando falamos de direitos humanos, o mais importante é o da liberdade. É impossível imaginar a vida sem esse direito. Nós não seríamos humanos, mas animais de estimação com taxa de serviço.

Por essa razão, eu pinto essas obras que você viu na Caixa Cultural. Ser livre para mim significa ser Uruguaio. A cultura é o que faz apegar-me à essa condição como uma forma de defender a minha liberdade. Quando as pessoas perdem sua cultura elas desaparecem, são como rebanhos conduzidos por seus proprietários. Aqueles robôs sem rosto, sozinhos ou circulando pelas cidades ou no campo, são os lacaios obedientes servindo um falso Messias.

Cassio Gusson: Os Robôs de Alamón são ao mesmo tempo máquinas e homens; ... De Chirico?

Alamón: Não posso negar que na minha formação como pintor adquiri influências das cavernas de Altamira. Mas no conteú­do meus robôs são produtos de minhas experiências de vida, da angústia que já mencionei. A história recente mostra como o poder pode mudar o ser humano e transformá-lo em seres robóticos, desprovidos de sentimentos, sem a capacidade de pensar. Assim não podemos crescer intelectualmente, ganhar sabedoria. Se colocarmos rostos, você coloca nomes nestes personagens que faço. O quadro é uma grande questão para a qual a resposta deve estar no observador. O diálogo será implementado desta maneira e assim é provável que este observador esteja ciente dos riscos para o homem na nossa época, época de rápidos avanços tecnológicos que permitem socializar essas pessoas, mas que acabam sendo escravos consumidores destes mesmos avanços tecnonógicos. 


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Sobre o Artista

Gustavo Alamón nasceu em 1935, em Tacuarembó, no Uruguai. Com sólida e impecável formação, tendo trabalhado com grandes nomes da pintura e da gravura uruguaios, como Anhelo Hernández, Edgardo Ribeiro, Miguel Angel Pareja, Luis Solari e Luis Mazzey, o artista, segundo Roberto Managau, produtor executivo da mostra, sedimentou os alicerces do seu talento, base da sua obra-mensagem, na crítica ao sistema e à forma que o ser humano é levado a transitar na sua existência.

Alamón realizou mais de 150 exposições individuais e coletivas, no Uruguai e no exterior. Participou da V e da VII Bienais de Valparaíso, no Chile, da XVII Bienal de São Paulo e expôs também em Nova Iorque e em diversas cidades europeias. Possui obras no Chase Manhattan de Nova Iorque, na Biblioteca Nacional da Espanha, nos Museus de Arte Moderna de Santiago do Chile e de Assunção, e nos museus da Fundação Rally.


Cássio Gusson

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